Na Rota das Tartarugas Marinhas

Pegada oceânica, Uncategorized

Carla Gomes Tartaruga Marinha

Dia 20/09/04. Faial. 16:45h. Chegada da Lucky à Horta.

“Estrada da Laginha, ilha do Faial. Na carrinha de caixa aberta do Departamento de Oceanografia e Pescas da Universidade dos Açores, estou eu mais uma tartaruga marinha – Caretta caretta, chamada Lucky. Neste momento a Lucky está acondicionada dentro de uma caixa de madeira devidamente arejada e com toalhas húmidas. O voo da Lucky foi longo, Copenhaga para a Horta, via Ponta Delgada. O colega João Gonçalves está a coordenar toda esta operação (1). Por agora, cabe-me ajudar a zelar, com os outros colegas portugueses e dinamarqueses, pelo devido transporte da Lucky do aeroporto da Horta para o tanque onde será marcada por telemetria por satélite e depois libertada. Outra carrinha mais atrás segue com as equipas de filmagem que fazem a reportagem deste momento. À medida que a carrinha anda, o vento bate-me no rosto, mas o meu coração bate mais depressa. Desejo ver esta tartaruga, em oceano aberto, após ter passado 5 anos em cativeiro e 14h fora de água. Mas antes disso, espera-me outra missão: crianças, alunos e a população em geral vão puder também ver a Lucky e aqui o meu papel é comunicar a importância da conservação das tartarugas marinhas no nosso planeta. Estou pronta.”

Em 2001, começa o meu trabalho em Educação Marinha (EM) e em Comunicação das Ciências Marinhas (CCM) relacionadas com este animal intrigante, que tem por nome científico Caretta caretta e por nome comum, tartaruga boba (também conhecida como tartaruga cabeçuda, comum ou careta). No Departamento de Oceanografia e Pescas da Universidade dos Açores (DOP/UAÇ) surgem as primeiras reuniões de equipa lideradas pelo Doutor Ricardo Serrão Santos para discutir os vários caminhos da comunicação científica relacionada com esta espécie, descrita na Directiva Habitats e na Lista Vermelha da IUCN. O estatuto de conservação para esta espécie é de espécie ameaçada.

Carla Gomes Salvar Tartarugas Marinhas

Tendo estudado previamente a história da tartaruga careta procurei a Doutora Helen Ross Martins, a pessoa que considero como referência nesta área nos Açores e que me ajudou com a sua simpatia, disponibilidade e sabedoria. Saber que era uma espécie considerada ameaçada eu já sabia. No âmbito do projecto Maré e na área da EM e CCM havia muito trabalho a fazer, agora era preciso construir um plano de comunicação integrado para esta espécie que fosse eficaz e duradouro. A primeira ligação necessária a fazer era lógica. Havia a necessidade de continuar a estreitar a comunicação com os pescadores, já iniciada anteriormente, para apoiar o trabalho de marcação desta espécie. Como bióloga, fiz todo o trabalho de pesquisa necessário sobre a espécie e com a Doutora Helen, marquei a minha primeira tartaruga. Confesso que me fazia impressão o processo de marcação, confesso que pensava nas questões da bioética e graças às minhas dúvidas aprendi mais sobre esta questão que ficará para outra história. Não iria marcar tartarugas, não seria essa a minha função, mas precisava de fazê-lo, de o sentir para comunicar melhor aos diferentes públicos-alvo que começava já a identificar como prioritários. Este é um facto que aos olhos dos meus colegas parecia estranho, pois ouvia e ainda ouço algumas vezes, “isto não interessa para ti”. Foi com a tartaruga que aprendi que tudo interessa para o Educador Marinho ou o Comunicador de Ciência. A primeira fase do seu trabalho é a de reunir informação, percepções, experiências e decidir depois o que fazer com esse conhecimento. É muitas vezes um trabalho de detective e as pistas neste caso eram claras, precisava-se da comunidade para dar seguimento ao trabalho científico de marcação e precisava-se da comunidade para ajudar a conservar esta espécie.

Por outro lado, observei que para o futuro era necessário semear bases para que os pescadores mais do que ajudar, estivessem comprometidos com o processo. Até a altura, os pescadores entregavam as tartarugas vivas, em troca de uma recompensa financeira, aos investigadores para serem marcadas e depois libertadas. Precisava-se de mudar o princípio e ao mesmo tempo espalhar a mensagem. Criei o slogan “Na Rota das Tartarugas Marinhas”.

Tshirt Tartarugas

Foram feitas t`shirts para dar aos pescadores, numa tentativa de aos poucos deixar-se de dar a recompensa financeira e o discurso quando as entregava era cuidado. A proteção deste animal deveria ser uma preocupação de todos e não uma obrigação, que quando cumprida exigia recompensação. Alongo-me aqui, pois considero este ponto fundamental para o futuro. É muito fácil, apregoar que se quer educar e depois viciar o próprio processo educativo com estratégias mais fáceis. E a nova estratégia estava a funcionar, não vi o número de entregas da espécie para marcação decrescer. Vi as mesmas a serem entregues no DOP/ UAÇ por pescadores.

Mas o trabalho não acabava aqui, era preciso ir mais fundo nas questões que envolviam os perigos que as tartarugas enfrentavam na sua rota até aos Açores – os plásticos. E pus mãos à obra. Ainda em 2001, associei a tartaruga careta à primeira Campanha Limpa (a) Fundo (2012). Com a minha colega Pita Gróz que trabalhava na altura na Direção Regional do Ambiente dos Açores (DRA) desenvolvemos os conteúdos e acompanhei o trabalho criativo para um folheto sobre as tartarugas marinhas nos Açores que foi entregue à população e aos pescadores por crianças durante as Campanhas Limpa (a) Fundo.

Folheto Tartarugas Capa

Com materiais que tinha em casa construí o módulo na “Rota das Tartarugas Marinhas”, o qual ainda guardo como recordação e que me inspirou mais tarde para criar outros módulos. Precisava também de uma água-viva e pedi à colega Ana Meirinho que me ajudasse a construi-la.

Carla Gomes Modulo Tartarugas Marinhas

E quando começava a ficar com a sensação de missão cumprida, compreendi em 2003 que ainda havia mais a fazer: era necessário envolver a Escola, era necessário integrar a mensagem no Kit Didáctico Maré; era necessário envolver a população e integrar a mensagem da conservação das tartarugas marinhas na Expo Maré e envolver também os estagiários que coordenei na transmissão da mensagem.Carla Gomes Água Viva

Kit Mare Ficha Tartarugas Marinhas

E a par das sessões de informação sobre esta espécie e sobre os seus processos de marcação, com vários públicos-alvo e em várias ilhas tive o privilégio de contactar com o Professor Adalberto Pombo e ouvir a história em primeira pessoa, de como foi marcada a primeira tartaruga marinha nos Açores.

No meu trabalho, quando comunicava abordava as várias ameaças às tartarugas marinhas e ouvia frequentemente as crianças dizerem “o meu avô tem uma carapaça de tartaruga marinha em casa…”. Felizmente nos Açores já não se caça tartarugas marinhas para alimentação, mas esta parte ficou-me gravada no coração e curiosamente, mais tarde tive a oportunidade de trabalhar nesta área não nos Açores, mas para São Tomé e Príncipe, onde aqui esta prática ainda é um factor de risco para as tartarugas marinhas.

Ao longo de mais de 10 anos a comunicar e a trabalhar esta temática com vários parceiros e públicos-alvo, a ciência avança e tive a oportunidade de observar a parte prática das primeiras marcações por telemetria nos Açores de tartarugas marinhas, com o colega Marco Aurélio. E infelizmente, observar também os conteúdos estomacais de tartarugas marinhas e encontrar plástico. Bem como, encontrar partículas de plástico nos dejectos de tartarugas marinhas que foram colocadas num tanque para marcação por telemetria aquando da chegada da Lucky à Horta.

Conteúdos Estomacais

E a minha paixão por estes bichos que aprendi a conhecer melhor e a respeitar não acaba aqui. Sempre que posso ajudo estes animais, quando chegam pequeninos à Praia de Porto Pim, após as tempestades de vento sul. A bordo do Risso falo deles, com aqueles que nos visitam, com imensa paixão. Carla Gomes Tartaruga Marinha Hortacetaceos

Em homenagem à Lucky de 2004 e que é mencionada no início das notas do meu diário de campo, surge outra Lucky no meu Projecto Vida. A Lucky do planeta Oceans-on. Ela está a chegar.

Referência Web:
Gomes, C. (2013). Na Rota das Tartarugas Marinhas. Blog Viver com o Oceano. Categoria Pegada Oceânica (Post 12/07/14). carlagomes.pt

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Notas de Rodapé:

Nota (1): Gonçalves, J. (2005): Relatório de execução do Projecto “Lucky”: Rastreio acústico de tartarugas-careta (Caretta caretta) selvagens e uma mantida em cativeiro (Lucky). Departamento de Oceanografia e Pescas da Universidade dos Açores, Horta.

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